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Crítica: A música inventa a memória no filme pernambucano Aquarius

  • Por Érico Andrade | Especial Diário de PE
  • 5 de set. de 2016
  • 3 min de leitura

Filme terá exibição seguida de debate nesta segunda-feira, com o diretor, no São Luiz


Sonia Braga protagoniza o filme do cineasta Kleber Mendonça Filho. Foto: Victor Jucá/Divulgação

Aquarius será exibido e seguido de debate, nesta segunda-feira, às 15h30, com o diretor Kleber Mendonça Filho e o filósofo Érico Andrade, na Mostra de Cine e Cidade do Recife, no Cine São Luiz. Ingressos: R$ 10 e R$ 5. Informações: 3184-3157

O cinema pode ser entendido, segundo Tarkovski, como a capacidade "de registrar o tempo através de signos exteriores e visíveis, identificáveis aos sentimentos". O desafio que Aquarius se impõe é trazer para o plano da montagem de fotogramas, a referência aqui é Eisenstein, uma narrativa com vistas a costurar diferentes quadros pelo som. A música de Aquarius substitui os ruídos da cidade de o Som ao redor e dá aos diferentes quadros o registro de uma só memória. É a música que liga os anos da história de Clara quando a montagem de diferentes cenas é feita ao som de "Toda menina baiana". Aquarius capta feridas sociais com sensibilidade e delicadeza São as músicas que passeiam pelo Recife e identificam os sentimentos de Clara aos objetos externos, à cidade. A música que quando não é cantada é recitada, como na cena, em que Clara remete a filha à musica Nervos de aço, de Paulinho da Viola, ou mesmo apenas vista, como na linda dedicatória de Clara aos filhos presente no seu livro sobre um músico, sobre Villa Lobos, que no quadro seguinte entoa para preencher de afeto o passado, em uma palavra: lhe conferir memória. É a música que inventa a memória de Aquarius e impregna o edifício, cujo nome é homônimo do título do filme, de história. Micro-história, para ser preciso. Aquariusfunciona como uma micro narrativa da cidade. Se, em ao Som Redor, essa micro-narrativa da cidade estava centrada na rua, com suas matizadas personagens, em Aquarius ela passa a habitar a feição decidida e livre de Clara. As mulheres e seus desejos, já retratadas em Eletrodomésticas e no próprio Som ao Redor, ganham em Clara algo raro no cinema: uma personagens feminina que não é governada, como observou Ana Paula Portella, pelo sentimentalismo dramático ou pela subserviência à crueldade da sociedade normatizada pelas regras do machismo. Clara encerra um elemento importante da política contemporânea que consiste, entre outras coisas, em transformar o corpo em espaço de resistência política. O corpo de Clara também é história, micro-história, que transformar o desejo em ato de resistência como na sequência de cenas que permite religar os seus olhos de voyeur (diante da suruba no apartamento vizinho, encomendada para lhe constranger a vender o seu apartamento) à liberdade do sexo casual e prazeroso com um michê (termo da época); como ela irá confidenciar à amiga em outra cena. Clara é a mulher que habita, numa cidade violenta, um prédio que só não é fantasma, como ela faz questão de lembrar, porque ela insiste, persiste, em guardar a sua memória, e, consequentemente não abandonar o seu apartamento, que no presente caso significaria deixar que o capital erguesse mais um dos seus símbolos fálicos. A violência urbana que cerca Clara não é mais a negra (do menino negro) que permeia a fantasia da classe média das ruas de Setúbal. Ela está no seio da própria classe média. Ela á força das construtoras. Ela é branca como Clara. Quando os dois trabalhadores da construtora se aproximam dela (neste momento o espectador, sobretudo de classe média, guarda dentro de si a sensação de uma violência iminente) eles trazem consigo uma preocupação com a resistente senhora e avisam do plano da construtora de deixar os cupins, trazidos sobre medida, fazerem os prédio ruir. No entanto, Clara é a cidade que não se entrega. Ela é, impossível não fazer menção à música, "madeira de lei que cupim não rói". Por meio da história de Clara o diretor Kleber Mendonça Filho consegue mostrar a força da micro-história capaz de fazer da narrativa de uma personagem a narrativa da cidade que tal como Clara não quer se apagar.

Érico Andrade ericoandrade@gmail.com Crítico de cinema, filósofo e professor doutor em filosofia da UFPE

 
 
 

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